Nome: Cruz Vermelha
Ano de fundação: 1883
Primeiro desfile: Carnaval de 1884
Último desfile: Carnaval de 1958
Fundador: José de Oliveira Costa
O Clube Carnavalesco Cruz Vermelha foi criado em 1883 por um grupo de jovens frequentadores do antigo Clube Caixeiral, todos gozando de bom capital social e econômico na cidade. O clube teve como seu primeiro dirigente o comerciante português José de Oliveira Costa e a sua primeira sede foi estabelecida no bairro da Barroquinha. Com apoio de comerciantes locais, o Cruz Vermelha desfilou pela primeira vez em 1884 com mais de uma centena de associados.
Seus desfiles eram um acontecimento! A pompa e o luxo que apresentavam nas ruas fez com que o clube atraísse a atenção da população e da imprensa locais logo na sua estreia. Já na sua primeira apresentação instituiu um “tema-enredo” e caprichou no tom da crítica – no caso de 1884 explicitaram uma crítica às suspeitas de corrupção no jogo de loteria da época. Os temas eram escolhidos e preparados com bastante antecedência, sendo materializados através das fantasias e dos carros alegóricos, os famosos “carros de ideias” – criados em galpões destinados especificamente a este fim. O Cruz Vermelha não foi a primeira entidade carnavalesca soteropolitana, mas fez história por ter sido a primeira a se apresentar com carros alegóricos nas ruas de Salvador.
Como era com os outros clubes, o desfile do Cruz Vermelha era organizado por alas. Cada desfile era único e muitas novidades podiam ser esperadas, no entanto, alguns aspectos tornaram-se característicos deste tipo de apresentação – a abertura com a banda musical (chamada também de charanga) e com destaque para os clarins anunciadores; e um carro alegórico de pompa, quase sempre chamado de “carro triunfal”, que carregava o personagem de destaque de cada ano, bem como o estandarte da entidade. Além disso, muitas outras alas com pessoas fantasiadas representando personagens importantes e que vinham no chão, a cavalo, em carros alegóricos ou em veículos comuns.
Nas suas apresentações mais emblemáticas, o Cruz Vermelha fez referência à diferentes passagens da história europeia – reis, rainhas, revoluções, conquistas, heróis foram a grande fonte de inspiração para os temas dos desfiles.
Em 1889, por exemplo, a história em torno do imperador romano-germânico Carlos V (que também foi Carlos I quando passou a ser o Rei da Espanha), deu o tom e a estética a toda a apresentação do clube. O foco central nesta história não impossibilitou, no entanto, que o clube expusesse suas críticas a temas que ganhavam destaque naquela época, como o jogo, a cerveja e a imigração. Este desfile foi um marco na história do Cruz Vermelha, sendo lembrado por muito tempo como uma das apresentações mais apoteóticas do clube. É possível conhecer melhor este desfile a partir do resumo detalhado que o Diário do Povo fez após o cortejo.
As 4 horas da tarde a massa de povo que aglomerava-se na praça Castro Alves era arrastada por umas alas marciais enthusiasticas que irrompiam e aproximavam-se pela rua da Montanha.
Era o Cruz Vermelha, que fazia a sua entrada triumphal nas ruas da cidade alta.
E adentrando o suntuoso préstito ostentava-se a magnífica charanga, com os costumes riquíssimos de guardas reaes uniformizadas à corte austríaca, seguidos de dois clarins igualmente trajados.
Logo depois da banda musical do club, 12 cavalheiros à Carlos V desfilavam garbosamente, precedendo o bonito carro allegórico do Amor acompanhado da Loucura e do Prazer, tendo ao centro uma cornucópia a despejar flores e borboletas numa profusão riquíssima de cores.
Súbito os olhares eram atraídos para o carro triumphal, em que os esplendores projectados pelo deslumbrante estandarte, empunhado gloriosamente pelo grande imperador Carlos V, despertavam no coração do povo explosivas manifestações de enthusiasmo.
Acompanhavam o sábio imperador da Allemanha e rei das Hespanhas 18 cavalleiros, vestidos com as magnificências à moda do duque de Enghien nos imponentes torneios em honra ao rei vencedor.
As ovações que esta guarda de honra recebeu são indescriptíveis.
Em seguida a faceira neta do céu, filha do celeste império, a delicada Flor de Chá recostava-se languidamente em um lindo e irisado leque de bambus.
Este carro allegórico era sucedido por outros carros conduzindo graciosos fidalgos da corte do rei das Hespanhas, brilhantemente adornados, carros e fidalgos, relembrando as sumptuosidades d’aquella opulentíssima corte.
O Jogo, o rei dos tempos modernos que arruína os seus adoradores mais prosaicamente do que uma [termo não legível, provavelmente um sinônimo para “mulher”] bonita e caprichosa, compareceu em um outro carro allegórico […]. Esta allegoria era presidida pelas quatro damas de Ouros, Copas, Paus e Espadas, graciosamente trajadas.
Seguia-se ainda grande número de carros com fidalgos da corte de Carlos V.
Duas engraçadas críticas: a questão da cerveja e da imigração, entremeavam-se no luzido préstito que era fechado por uma sorprehendente apoteose ao Brazil Livre.
O préstito, já pela riqueza dos costumes com que trajavam-se os sócios do club, já pelo magnificente conjunto que formava, era aclamado e victoriado por todas as ruas onde passava.
À noite por ocasião da passeata à fogos cambiantes o cortejo assumiu um aspecto deslumbrantíssimo e ao encontrar-se nas Mercês com o Club dos Fantoches o enthusiasmo era intraduzível.
De volta da imponente passeata fizeram sua entrada no Theatro S. João, onde as ovações atingiram ao delírio.
[Diário do Povo, 04/03/1889]
Em 1891 foi a vez da história da família italiana dos Médici ser contada carnavalescamente pelos jovens foliões do Cruz Vermelha. Foi com muita criatividade que foram representados os principais fatos, lendas e personagens desta importante dinastia política italiana que por anos dominou e governou Florença.
Conhecendo o histórico do clube e acompanhando a preparação dos seus associados, a imprensa apostou que seria uma grande apresentação.
O popularíssimo club Cruz Vermelha não tem poupado esforços para apresentar-se com grande esplendor. É de esperar cousa nunca vista.
[Jornal de Notícias, 20/01/1891]
E assim foi! Mais um desfile que fazia história no novíssimo carnaval soteropolitano.
Ao club Cruz Vermelha cabe incontestavelmente a palma do triumpho pela jornada de hontem.
Com effeito os alegres rapazes que constituem o apreciado club apresentaram-se de modo a merecer todos os applausos com que os acolheram seus admiradores.
O club exibiu-se em brilhante préstito, posto que menos numeroso que no ultimo anno em que tomou parte nas festas, vinha precedido de grande banda de música a cavallo uniformizada a prussiana, farda e pantalonas de flanella branca, capacetes de metal dourado de muito effeito.
Seguiam-se os pares da guarda de honra também a cavallo trajando belíssimo factos à corte dos Medicis de setim amarello e carmesi e elegantes chapéus de plumas brancas.
O carro do estandarte era um primor de arte, representava um throno de grande altura cujos degraus ladeados por soberbas estatuas eram occupados pelos gentis homens da rainha Medicis que empunhava o estandarte do popular club.
O vestido da formosa porta estandarte, bem como os dos fidalgos que guardavam o seu throno eram de incomparável riqueza e bom gosto.
Seguiam-se em carros lusidamente adornados os sócios do club trajando bellíssimas vestes em harmonia com a epocha histórica da personagem representada no carro do estandarte.
Entremeando o préstito viam-se delicadas alegorias que foram recebidas com palmas e flores pelo público que enchia as ruas e as janellas.
[Pequeno Jornal, 12/02/1891]
Para que tudo saísse como o esperado, os clubes realizavam vários ensaios com as suas bandas de música e também faziam passeatas prévias pelas ruas centrais da cidade a fim de apresentar e envolver a população com o seu tema-enredo e, claro, aproveitar para ir aquecendo para os dias de Momo. O Cruz Vermelha geralmente se apresentava com a sua “charanga” e com a banda musical do 1º corpo da polícia municipal.
Nas suas primeiras décadas, o Carnaval de Salvador não dispunha de um itinerário único para os desfiles dos clubes. Era certo que tudo acontecia nas ruas centrais da cidade, mais especificamente no trecho entre o Campo Grande e o Terreiro de Jesus. Os próprios clubes traçavam suas rotas, saindo de bairros próximos, como o Comércio, Lapinha, Carmo, Graça etc. O itinerário divulgado pelo Cruz Vermelha no ano de 1904 ilustra bem essa logística festiva.
O itinerário podia até sofrer pequenas alterações de ano para ano, mas uma coisa não mudava para o Cruz Vermelha – o encerramento dos seus desfiles sempre conduziu seus associados para os salões de baile do Theatro São João. Era ali que terminavam o carnaval, noite adentro com muita música e, claro, muita pompa.
Do sr. João Gomes também recebemos convites para os bailes de phantasia no Theatro São João, dedicados ao applaudido club Cruz Vermelha.
[Diário do Povo, 02/03/1989]
AUSÊNCIA
Impactados por oscilações na economia local, os dirigentes do Cruz Vermelha e do Fantoches da Euterpe se veem forçados a abandonar o carnaval ainda quando os clubes viviam o seu auge na festa. Assim, as duas entidades deixam de desfilar de 1892 a 1903. Mesmo distante das ruas por mais de uma década, a imprensa não deixou de mencionar, sempre em tom saudoso, os principais personagens dessa fase áurea da folia momesca soteropolitana. Estratégia, sem dúvida, importante para que não caíssem no esquecimento durante este hiato temporal tão extenso.
RETORNO TRIUNFAL
O reencontro do Cruz Vermelha com o Carnaval de Salvador demorou e só aconteceu no ano de 1904. Para marcar a ocasião o clube enviou uma carta nada modesta à imprensa reafirmando o seu valor na festa de Momo e convocando a população para acompanhar a sua apresentação.
O Club Carnavalesco CRUZ VERMELHA, no desejo de corresponder às grandes e largas sympathias que tem no seio da ilustrada sociedade bahiana, resolveu, após uma ausência de longos anos, tomar parte nas festas do Carnaval, que amanhã se iniciam, empregando para isso os esforços de seus dedicados associados, secundados pela boa vontade de muitos de seus numerosos e ardentes adeptos.
Pelos ilustres órgãos de sua operosa e digna imprensa a Bahia jamais deixou de se manifestar desejosa de ver occupar um logar nas festas carnavalescas este Club, desde que ele, por motivos que não vem a pelo explicar, se viu forçado a não dar o seu concurso a tão agradáveis diversões populares.
Essas vozes, repetidas todos os anos, no transcurso da prolongada ausência, como echos saudosos de vibrantes demonstrações de apreço de uma sociedade culta em delirantes expansões de alegria, suggestionaram-no, subjugando-lhe o animo, inflamando-lhe o ardor e impelindo-lhe o passo.
Era irresistível a intimação e o CLUB CRUZ VERMELHA tem a honra de anunciar a sua reaparição no Carnaval de 1904. Sentir-se-á satisfeito, se a somma de seus esforços postos em contribuição para tal fim puder corresponder à crescente ansiedade pública, trazendo o contingente de sua boa vontade às esplêndidas festas, em que brilhará o espírito, o gosto e a inteligência de distinctas outras associações carnavalescas desta capital.
[Diário da Bahia, 13/02/1904]
A imprensa comemorou incansavelmente este retorno, mencionando que se tratava de uma ressurreição para o Carnaval da Bahia. Inclusive, não perdeu a oportunidade de, com este acontecimento, impulsionar a campanha racista que estava a todo vapor neste período.
Por tão auspiciosos prenúncios o Carnaval de 1904 não será a característica de deponentes exibições da África selvagem.
[Correio da Tarde, 13/03/1903]
Fato é que, com um desfile que carnavalizou a França do século XVI, o Cruz Vermelha retornou seu posto no alto escalão do carnaval da cidade. A pompa e a sofisticação do desfile podem ser confirmadas no programa detalhado que o clube enviou para a imprensa local (Diário da Bahia, 13/02/1904).
O ano de 1905 também ficou marcado como tendo sido um grande carnaval para o Cruz Vermelha, que se apresentou tendo como tema as lutas do povo gaulês.
Consta que durante a II Guerra Mundial o Clube decidiu mudar o nome para Cruzeiro da Vitória, para evitar mal-entendidos com a xará assistencialista. De fato, essa mudança aparece nos registros da Prefeitura.
Entre altos e baixos, oscilando entre desfiles apoteóticos cada vez mais raros e longas ausências cada vez mais frequentes, o Cruz Vermelha conseguiu resistir até a década de 1950, mantendo a tradição de enaltecer os grandes feitos da história até o seu último desfile, em 1958, quando se apresentou com o tema “Helena de Tróia e a guarda troiana”.