O vazio deixado pela proibição ao Entrudo foi imediatamente preenchido pelas visões de mundo que prevaleciam nos imaginários da elite baiana. A partir de 1884, marco desse novo tempo carnavalesco, o que se viu nas ruas do centro da cidade foi um acontecimento grandioso e inédito. Marcando uma mudança brusca com os modos como se brincava o entrudo nas ruas, desfiles públicos de pompa passaram a apresentar para a população carros alegóricos que tematizavam fatos emblemáticos da história do progresso ocidental.
O carnaval de rua de Salvador nasceu fortemente inspirado pelas festas de Momo que aconteciam na França, especialmente as da cidade de Nice. Durante o século XIX a referência de beleza e estética era largamente associada aos signos e à cultura francesa, assim, as danças de salão como o cancan, as fantasias dos pierrôs de Gavarni (inspirados na commedia dell’arte), as máscaras, os confetes e as serpentinas eram moda já durante a primeira metade do século. Das festas com temáticas burlescas aos primeiros carros alegóricos, a Cidade Luz foi a primeira grande referência para os carnavais de luxo que ganharam as ruas da capital baiana. Vale lembrar, contudo, que a elite da cidade já experimentava modelos de carnaval europeizado desde a década de 1840, com os bailes de máscaras no Teatro São João e, mais tarde, a partir de 1887, no então recém-inaugurado Teatro Politeama.
O novíssimo carnaval de Salvador deslocou essas elites do confinamento privado dos salões de baile para as ruas, possibilitando que toda a ostentação com que já brincavam o carnaval pudesse ser apresentada para a população. Tamanha pompa foi protagonizada (e financiada) pela alta sociedade baiana, que vinha no chão, nos cavalos ou nos carros – sempre com fantasias ricamente adornadas (quase sempre importadas da Europa).
Para sair às ruas, a alta sociedade da época e a nova classe média urbana, se organizavam em agremiações e clubes carnavalescos. Dentre os incontáveis grupos que surgiram, os mais emblemáticos foram o Fantoches da Euterpe (1884), o Cruz Vermelha (1884) e o Innocentes em Progresso (1900). Esses grandes clubes de inspiração europeia apresentavam fantasias e carros alegóricos luxuosos em desfiles com trajeto e tema anual específico.
Para além dos três grandes clubes, muitos outros grupos de menor porte compunham o cenário festivo de Momo – Críticos Carnavalescos, Cavalheiros de Veneza, Saca-Rolhas, Club das Pêtas, Clube dos Cacetes, Companheiros do Silêncio, Os Cavalheiros de Malta da Luzo Guarany, Os Abolicionistas, Mutamba, Críticos Independentes, Conselhos de Cupido, Grupo dos Nenés, Democratas Carnavalescos, Clube das Cobertas, Cavalheiros das Cruzadas, Teresa e Maria, Cavaleiros dos Mendonças etc. Clique AQUI e confira o nome dos clubes carnavalescos que surgiram neste período e foram registrados na imprensa baiana. (inserir tabela das entidades/ano)
Os desfiles desses clubes carnavalescos, especialmente a pompa dos três maiores, sempre foram muito bajulados pela imprensa, que não poupava elogios para as suas apresentações e já ousava afirmar que o carnaval daqui nada devia para o do Rio de Janeiro e até da Europa.
O comércio também vibrou com esse novo momento do carnaval, já que as vendas de máscaras, fantasias e tecidos aqueceram a economia local. A verdade é que o Carnaval de Salvador, desde a sua primeira edição, em 1884, sempre mobilizou toda a cidade em torno de si – poder público, categorias profissionais, autônomos, elite e populares, imprensa e comércio.
O êxito popular que esse modelo festivo logrou podia ser visto nas ruas, com as milhares de pessoas que se deslocavam para o centro da cidade nos Dias Gordos para apreciar o tão aguardado préstito dos clubes. Como demonstra a nota do Diário do Povo, em 1889 Salvador já recebia turistas interessados no seu carnaval.
Extraordinária era a massa de gente que agrupava-se em todas as ruas da capital. N’algumas por vezes era impossível o transito. Aqui e ali nos logares aceidendadis, era um espectaculo bellissimo aquelle oceano de gente, que em ondas movia-se confusamente, afastando-se ou comprimindo-se para dar passagem a um club que passava.
Além da população já crescida que possue esta capital, de todos os pontos da provincia, ainda os mais distantes e afastados, afluiu para aqui grande numero de admiradores das festas do deus Momo.
E tal tem sido o renome que tem alcançado o carnaval da Bahia, que de varias provincias, principalmente das visinhas do norte, Alagoas e Sergipe, vieram assistir as festas carnavalescas d’este anno muitas familias.
[Diário do Povo 04-03-1889]
CARROS DE CRÍTICAS
Atentos às contradições da nova república, os clubes também desfilavam com carros de críticas que, não demorou muito, passaram a incomodar profundamente as autoridades locais que se sentiam ofendidas pelos julgamentos públicos proferidos a elas, às suas corporações ou a órgãos públicos. Entre os temas mais criticados estavam a corrupção na política, o nepotismo, a distribuição de renda desigual entre os estados da federação etc. As críticas mais ácidas passaram a incomodar tanto as autoridades políticas e o clero que passaram a ser combatidas e, a partir de 1905, proibidas.
O QUE ESSE CARNAVAL NOS DIZ
Esta primeira fase do carnaval moderno soteropolitano nos fornece uma leitura muito particular de toda a conjuntura do período. A cosmovisão burguesa da época foi materializada nos seus luxuosos desfiles públicos. O primeiro desfile do Fantoches da Euterpe, por exemplo, retratou a entrada triunfal de César em Roma após longas guerras contra os bárbaros. Era esse imaginário europeu que a sociedade baiana venerava. Com toques de surrealismo, o que se queria dizer ali é que a força do império romano era para onde se deveria olhar. Muitos outros desfiles seguiram esta linha temática, como os reinados, a arte e a cultura francesas do renascimento retratados em apresentação memorável do Fantoches em 1889. Dois anos depois, o Cruz Vermelha apresentou a dinastia política italiana da Casa dos Médicis, com a corte de Florença representada em carros, estandarte e fantasias. No ano de 1904 o Fantoches se debruçou sobre personagens históricos, lendas e mitos greco-romanos do fim da Idade Média e início do renascimento; já o Cruz Vermelha abordou a França do século XVI elegendo as figuras de Henrique IV e do Príncipe de Condé para carnavalizarem com eles. Em 1887 um fato curioso reforça o quanto esta parcela da população estava imbuída da missão civilizadora que os novos tempos inspiravam – Cruz Vermelha e Fantoches da Euterpe encabeçaram uma ação conjunta para a libertação de uma escrava, via carta de alforria.
É fundamental observar que nas histórias contadas nestes desfiles não havia papel de destaque para os negros da cidade, quando muito figuravam em papeis subalternos. A maior parte apenas assistia, de forma controlada, a passagem daquele espetáculo que apresentava a cara que se desejava para essa nova cidade.
No entanto, tendo em vista o peso demográfico e sociocultural dos negros que viviam em Salvador em finais do século XIX, seria bastante improvável que essa parte da população abraçasse passivamente o projeto civilizatório imposto. Apesar de socialmente hegemônicos, os clubes da elite não brilharam sozinhos e para desgosto dos que elucubravam um afrancesamento da Bahia, um carnaval popular repleto de africanismos se afirmou bem no centro do tão sonhado carnaval burguês.
ALTOS E BAIXOS
Entre muitos altos e baixos, a trajetória dos três grandes clubes resiste por várias décadas, apesar de ir se desgastando gradativamente por sucessivas crises econômicas e por mudanças de diversas ordens impulsionadas pelos novos tempos.
Desde o princípio, estes clubes sempre estiveram muito vulneráveis às intempéries econômicas que atravessavam frequentemente o contexto local, não conseguindo manter uma continuidade nas suas apresentações ao longo dos anos. Exemplo disso, entre 1892 e 1903, Cruz Vermelha e Fantoches da Euterpe não desfilaram. Retornam em 1904, porém a crise financeira decorrente da Primeira Guerra Mundial volta a impactar diretamente na pompa carnavalesca desses grupos, impossibilitando a manutenção do luxo dos carros alegóricos e das fantasias dos seus desfiles de rua. Mesmo com muitas dificuldades e com sucessivas ausências na festa, as entidades foram mantidas e se apresentaram algumas poucas vezes ao longo das décadas de 1930 e 1940. Em 1951 a Prefeitura Municipal convida os três grandes clubes para desfilarem em cortejo único com a intenção de reviver os grandes carnavais do passado. Apesar de ter sido anunciado com muito entusiasmo e expectativa pela imprensa local, estas entidades não recuperaram mais o prestígio de outrora.
Últimos desfiles: em 1958 o Clube Carnavalesco Cruz Vermelha desfilou pela última vez com o tema “Helena de Tróia e a guarda troiana”; em 1962 o Clube Carnavalesco Fantoches de Euterpe desfilou pela última vez com o tema “A bela adormecida”; e em 1988 desfilou pela última vez o Clube Carnavalesco Innocentes em Progresso, já bastante desgastado, sendo que a partir dos anos 1960, se apresentava apenas com um carro alegórico.
Assim, ao longo da primeira parte do século XX estas entidades vão perdendo espaço para um carnaval cada vez mais popular, mais participativo e menos contemplativo.