Com o fim da proibição aos “costumes africanos”, a presença da população negra vai se avolumando nas ruas durante o carnaval a partir de uma multiplicidade de formas e expressões. Na década de 1920 já há uma presença significativa de grupos oriundos das camadas mais populares integrando o carnaval de Salvador. Mas é no período que vai da metade da década de 1930 ao final da de 1950 que se assiste a uma ebulição afro-festiva pelas ruas da cidade. É, especialmente, nesse trecho da história que a presença negra passa a marcar definitivamente a festa carnavalesca soteropolitana, atualizando a sua configuração inicial ligada às tradições europeias tão veneradas pela elite.
O carnaval de rua, de feição popular, passou a se configurar como a forma mais “autêntica” e “verdadeira” da festa, como deixam escapar os jornais da época. É esse lado popular – com sinais diacríticos da cultura negromestiça, que passa a definir a identidade do carnaval baiano. Preenchendo o espaço deixado pela decadência dos clubes da elite, especialmente a partir da segunda metade da década de 1930, inúmeros blocos, cordões, batucadas, afoxés e pequenos clubes surgem aos borbotões e consagram-se soberanos das ruas e do povo. Genuinamente populares, esses grupos surgem de bairros pobres da cidade e do seio da classe trabalhadora, composta em grande parte por negros e mestiços. Eram sinônimos de alegria e diversão para as classes menos favorecidas e, inclusive, para a classe média, que costumava reunir a família e armar cadeiras ao longo das ruas do centro para assistir o carnaval e seus personagens passarem.
Nesse modelo de carnaval de rua, marcado por uma grande participação popular, não havia uma separação rígida entre atração e folião – comum nos dias de hoje, mas sim uma simbiose entre esses componentes da festa. O povo tomava parte, ao mesmo tempo, como espectador e como personagem ativo da construção da folia.
No que diz respeito à musicalidade, havia uma diversidade interessante no contexto carnavalesco – ritmos de origem africana, fanfarras e marchinhas se faziam presentes, mas era o samba que, definitivamente, dava o tom para as festividades populares desse período. Muitos dos sucessos cariocas que chegavam por aqui pelas ondas do rádio eram reproduzidos na festa – o que acabou incentivando, também, uma produção local, onde compositores baianos passaram a escrever sambas pensando exclusivamente no carnaval. Batatinha, Edil Pacheco, Ederaldo Gentil, Walmir Lima e Nelson Rufino são exemplos de nomes de peso que compuseram sucessos para cordões e, depois, para escolas de samba.
No período pesquisado (1950-1975), a festa oficial de Momo acontecia durante três dias – domingo, segunda e terça-feira. Entretanto, no sábado sempre despontava algum cordão ou batucada a animar precocemente as ruas do centro da cidade. Isso vai ganhando corpo e, em 1971, o jornal Diário de Notícias já caracteriza o carnaval soteropolitano como uma festa de quatro dias – “Quem viu a cidade ontem pela manhã não tem mais dúvida que a festa começa, mesmo, é no sábado” (DN, 13 a 16/02/1971). Em 1973, a SUTURSA divulga a programação oficial com quatro dias (de sábado à terça-feira).
Nesse período, o percurso da folia ia do Campo Grande até a Praça da Sé, passando pela Avenida Sete de Setembro, Piedade, São Bento, Praça Castro Alves e Rua Chile. A principal artéria deste trajeto era a Rua Chile, já próxima do final do desfile, a tradicional rua da cidade era o local para onde confluía o maior número de foliões.
A preparação da estrutura de apoio da festa (iluminação, decoração temática, serviço de alto-falantes ao longo do circuito, concursos, palanque da Praça da Sé etc) ficava a cargo da Prefeitura, na figura do Departamento Municipal de Turismo e Diversões Públicas, posteriormente Departamento Municipal de Certames e Turismo e logo depois Superintendência de Turismo da Cidade do Salvador (SUTURSA).
No que diz respeito aos auxílios financeiros, essa mesma instância era responsável pelo apoio anual cedido às entidades carnavalescas, o que era motivo recorrente de muitas reclamações por parte dos seus dirigentes, dada a quantia ser significativamente inferior ao que de fato gastavam com a preparação para a folia. Por conta dessa discrepância, festas, rifas e “livros de ouro” eram geralmente organizados para incrementar a renda e proporcionar uma melhor qualidade ao préstito do cordão ou da batucada. Em alguns casos, os dirigentes desses grupos também procuravam empresários e políticos próximos a fim de angariar mais verba. Lucrar com a festa não era, ainda, o objetivo destas práticas, mas, sim, obter recursos suficientes para que sua agremiação pudesse se apresentar dignamente.
Fica evidente o sentido de comunidade estabelecido entre essas entidades carnavalescas populares. Era esse sentimento que proporcionava a chance de trabalharem em comunhão e em prol de seus cordões e batucadas, espaço onde exaltavam seu amor ao carnaval e ao samba.
GRITOS DE CARNAVAL
Mesmo acontecendo em apenas três dias, o carnaval não era menos animado. O clima festivo começava a contagiar a cidade desde o início de janeiro com a realização dos gritos carnavalescos, que ocorriam periodicamente nos bairros de origem dos cordões e das batucadas e funcionavam como espécies de esquenta e termômetro para a grande festa. Em uma matéria do jornal A Tarde, do dia 23 de janeiro de 1954, lê-se que “se bons forem os gritos, melhor será o carnaval”. A realização dos gritos criava uma espécie de circuito pré-carnavalesco não oficial pelos bairros de Salvador. Dada a sua popularidade, alguns gritos se tornaram muito famosos, para onde todos, foliões e agremiações, convergiam – merecem destaque o Grito do Garcia, do Tororó, do Beco do Cirilo (Estrada da Rainha), da Avenida J.J.Seabra e o da Cruz do Pascoal, no bairro do Santo Antônio.
Além dessa questão territorial, havia os gritos organizados por comerciantes conhecidos da cidade, como era o caso da Loja Milisan, na Avenida Sete de Setembro; e da Casa Duas Américas, na Rua Chile. Estes eram dois dos maiores gritos carnavalescos da cidade, aguardados com ansiedade pelos amantes da folia e pelas agremiações, que concorriam a muitos prêmios nessas ocasiões. Todo esse clima festivo servia, também, para estimular o consumo nesses comércios. A Duas Américas, por exemplo, era a maior vendedora de lança-perfumes da cidade.
Durante a realização dos gritos, além da agremiação anfitriã, batucadas e cordões de outros bairros de Salvador se apresentavam para abrilhantar ainda mais a festa. Eles eram convidados a comparecer por meio de notas publicadas nos jornais da época, que anunciavam amplamente a agenda pré-carnavalesca. Prêmios eram oferecidos aos cordões e batucadas que melhor se apresentassem ou que simplesmente comparecessem – geralmente troféus e taças, ocasionalmente alguma quantia em dinheiro.
Assim, havia uma rivalidade saudável entre essas entidades, que obedeciam a uma territorialidade, e buscavam se destacar dos demais seja nas fantasias, no ritmo, na animação. Esse esmero em se destacar das demais impulsionava, por muitas vezes, um carnaval melhor do que o anterior.