Segundo viajantes que passaram por Salvador, no final do século XIX a população negra na cidade seria pelo menos duas vezes maior que a de brancos. Assim, considerando esse peso demográfico e sociocultural, seria improvável que grupos de negro-mestiços baianos não assumissem importância no Carnaval.
Com a proibição do Entrudo, e especialmente a partir de 1888, abriu-se uma brecha social e simbólica para a emergência de outros divertimentos. Proliferaram, então, agremiações e manifestações negras de vários tipos, notadamente: batuques, afoxés e clubes uniformizados negros. Configuraram-se como o verso do Carnaval oficial, um Carnaval popular dos grupos negro-mestiços compostos por uma multiplicidade de associações pequenas, assim como alguns poucos e destacados clubes uniformizados maiores.
Diversas agremiações de evidente matriz africana foram registradas pela imprensa baiana nos últimos anos do século XIX: Embaixada Africana, Pândegos da África, Cavaleiros Africanos, Andarilhos Africanos, Caçadores Africanos, Netos da África, Defensores da África, Foliões Africanos, A Chegada dos Africanos, Filhos da África, Nagôs em Folia, Velhos da África etc.
Assim, enquanto o discurso do Carnaval oficial expresso pelo Poder Público e pela imprensa era dominado pelos clubes da elite, no entorno do centro da cidade e mesmo nos mesmos itinerários do centro, os grupos africanizados avolumavam-se e formavam a base do que os especialistas têm denominado de africanização do Carnaval de Salvador.
A elite soteropolitana, que preconizava divertimentos com um cunho mais europeizado para a cidade, não via essa africanização da festa com bons olhos. Muitos aspectos que caracterizavam a apresentação pública desses grupos passaram a incomodar – os instrumentos percussivos (“instrumentos exóticos”), os trajes e máscaras considerados mal feitos e inapropriados (“maltrapilhos”), os cânticos africanos, o jeito de dançar, as pinturas no corpo etc. A preocupação das elites e de parte importante da imprensa ficou mais evidente em 1898, ano em que a festa foi apelidada pelos cronistas de “carnaval africano”.
O pesquisador Rafael Vieira Filho (1995) categorizou pelo menos quatro manifestações culturais negras no período: (I) os Clubes Uniformizados Negros, (II) os Batuques (manifestações também conhecidas como corta-jaca, corrido ou bate-baú, que tomavam a forma muitas vezes de roda de samba, tendo como principal característica a dança coletiva em que homens e mulheres tocavam e dançavam, respectivamente), (III) os Afoxés e (IV) os grupos vestindo “saia e torço”. Percebe-se que num mesmo quadrante étnico, formas diversificadas reafirmavam-se e, como se poderia imaginar, compartilhavam elementos.
Musicalmente, era comum que essas manifestações utilizassem instrumentos como berimbau, ganzá, bumbo e atabaque e tocassem variações de músicas sincopadas de matriz africana que eram englobadas como batuques ou lundus, e, depois, foram categorizadas como maxixe e, posteriormente, samba.
Simbolicamente, todos aportavam elementos de ancestralidade que remetiam à África: suas belezas, suas grandes civilizações, seus deuses e seus animais exuberantes e fortes. Tudo isso era incômodo aos setores socialmente superiores da cidade, visto que, numa perspectiva evolucionista, julgavam estes aspectos como práticas inadequadas ao estágio da civilização que se julgava que Salvador estivesse.
Entretanto, os Clubes Uniformizados Negros guardavam especificidades ao utilizarem alguns aspectos da forma de se apresentar dos clubes de inspiração europeia. Por isso, eram poupados de críticas ou mesmo elogiados por apresentarem desfiles bem organizados, com um rico figurino e sempre exibindo lapsos de uma África civilizada, rivalizando em atratividade com os clubes de elite. Pode-se entender, então, que esses clubes uniformizados negros eram híbridos na sua composição de elementos – bebiam dos cortejos tradicionais europeus, ao mesmo tempo que apresentavam diversos aspectos da cultura africana e afro-brasileira.
De modo geral, a estrutura básica dos desfiles desses clubes contava com arautos tocando clarins anunciadores; uma cavalaria precedendo um carro imponente com o personagem central do desfile (normalmente um representante da realeza), sempre acompanhado das demais autoridades com as quais divide o poder (ala chamada de “guarda de honra” ou “guarda nobre”); depois, os “súditos” por ordem de prestígio dos personagens.
As apresentações públicas desses Clubes Uniformizados Negros foram diretamente influenciadas por tradições africanas, especialmente no que diz respeito aos temas dos desfiles, músicas cantadas em línguas africanas, danças e movimentos corporais, indumentárias e outras referências estéticas importantes para este grupo étnico. Todos esses elementos tomam a forma de uma aproximação via religiosidade, uma vez que as danças e a música são elementos, sobretudo, religiosos nas regiões de onde vieram os escravizados para o Brasil. Desse modo, pode-se dizer que esses clubes, mediante a aproximação de traços europeus com o aporte denso de estruturas simbólicas, lúdicas e rituais de matriz africana, viabilizaram uma manifestação afro-baiana aceita.
Dentre os clubes negros, notabilizaram-se Embaixada Africana e Pândegos de África. De modo inusitado, apesar do explícito racismo das autoridades e dos discursos das elites letradas, essas duas agremiações estiveram praticamente imunes a crítica e muitas vezes seriam elogiadas pela beleza e caráter ordeiro. Os desfiles desses clubes, embora seguissem o formato das grandes sociedades carnavalescas da elite branca, colocavam-se como manifestações singulares num contexto em que negociações simbólicas e políticas muito sutis eram necessárias.
Apesar de não manterem relação direta com terreiros de candomblé – como era o caso dos afoxés – adotavam estruturas simbólicas, lúdicas e rituais que eram preservadas nesses espaços, como as músicas e danças africanas que davam ritmo ao imponente cortejo. Além disso, frequentemente incluíam nas suas apresentações personagens feiticeiros com o intuito de pedir proteção e afastar as más energias. Foi assim em 1897, quando a Embaixada Africana apresentou, no encerramento do seu desfile, o “poderoso Muquichi ou desmancha-feitiço”, que conduzia uma “significativa chave de ouro” para “afastar da Embaixada o azocri dos olhos máos”. (Correio de Notícias, em 27/02/1897)
Dito isso, vale ressaltar que, mesmo contando com inúmeras afinidades com as práticas dos Candomblés, os clubes uniformizados negros não eram afoxés. Os afoxés não possuíam muitos integrantes e geralmente estavam vinculados a algum terreiro. Já os dois grandes clubes uniformizados negros tinham organização (carros, cavalaria, fogos de bengala e outros elementos) e temática complexa e diversa dos afoxés. Apresentavam-se mostrando uma África tida como civilizada, em linguagem próxima aos clubes brancos e adaptando elementos expressivos das culturas afro-brasileiras. Não havia, no entanto, conflitos entre as duas formas de manifestação e é possível que, posterior ao período que foi estudado, as formas dos clubes uniformizados negros tenham influenciado os afoxés.