E fez-se carnaval!

De onde vem o carnaval?

No Brasil, desde o século XVII, os dias que antecediam a Quaresma eram marcados por um transbordamento festivo e uma algazarra generalizada – estratégia coerente se levarmos em conta os comedimentos bastante rigorosos a que todos ficavam submetidos por longos quarenta dias. Conhecido pelo nome de Entrudo, esta tradição luso-festiva foi trazida ao Brasil pelos portugueses e incorporada pela sociedade colonial que o celebrava nos Dias Gordos, entre o domingo e a quarta-feira de Cinzas. Pelo período e pela forma como acontecia, pode-se falar que o carnaval no Brasil é descendente direto dessa festividade.

Essas ocasiões eram marcadas por batalhas que envolviam molhar e sujar o outro com toda sorte de materiais, num claro ritual de zombaria e riso carnavalesco. É possível encontrar semelhanças na morfologia ritual com diversos festejos que se opõem ao período de privação da Quaresma, conforme demonstrou o pesquisador espanhol Julio Caro Baroja, sendo as expressões correspondentes mais antigas o carnal, as carnestolendas e o antruejo.

Em Salvador, a elite brincava o entrudo nos salões de baile ou nas suas próprias residências e suas “armas” eram bisnagas ou laranjinhas de cera cheias de água (pura ou de cheiro). Em alguns casos chegavam a utilizar farinha e ovos para piorar (ou melhorar) a sujeirada. Os escravos e empregados serviam os suprimentos aos seus senhores e eram, eventualmente, também as vítimas das brincadeiras. Esse era o entrudo doméstico – divertido, bem cheiroso e cheio de graça – assim ele era visto e por isso ele era tolerado pela sociedade burguesa que o festejava.

“Jogos durante o entrudo no Rio de Janeiro”, Augustus Earle, 1822.

Na rua o entrudo era outro. As laranjinhas de cera nem sempre eram viáveis para os populares, o que nunca foi um impeditivo para a brincadeira. Nesse caso, chegavam a brincar com bexigas de tripa de porco cheias de água ou de outros líquidos malcheirosos. Farinha, ovos, frutas podres e lama também podiam ser utilizados nas batalhas festivas dos populares, escravos ou forros. Os negros que participavam da folia também utilizavam máscaras e fantasias, elementos que serviam, muitas vezes, para burlar dos próprios senhores, já que pintavam a cara de branco e vestiam-se à sua imagem e semelhança, só que, aqui, de forma ridicularizada. A famosa aquarela de Debret, Die D’entrudo, nos fornece um indicativo dessa prática.

“Cena de Carnaval”, Jean Baptiste Debret, 1823.

É fundamental atentar para o fato de que, apesar de se configurar como um evento especial na vida de todos que o brincavam, o entrudo não suspendia a ordem escravocrata dominante. Prova disso, brancos podiam arremessar suas munições carnavalescas na direção dos negros, no entanto, a situação contrária era impensável pelas duras consequências que poderia causar.

Apesar de tolerado no âmbito doméstico, o entrudo das ruas passou a ser cada vez mais estigmatizado de bárbaro, sujo e atrasado. Desqualificado pelas elites, intelectuais e imprensa da cidade, era considerado um costume anárquico pelos “excessos festivos” que os negros cometiam nesses dias.

 

Caçada ao Entrudo

Mas, afinal, qual a justificativa utilizada para proibir a brincadeira do Entrudo?

A partir da década de 1870, instituições culturais (Museus Etnográficos, Institutos Históricos e Geográficos, Faculdades de Direito e Faculdades de Medicina) se difundem no país sob a égide de discursos de viés positivista, naturalista e evolucionista. A nova matriz de representações da intelectualidade nacional, diante de mudanças históricas como a abolição da escravatura e a criação da República, procurou responder a questionamentos acerca da viabilidade de uma nação miscigenada e virtualmente condenada ao declínio e extinção conforme os postulados da Antropometria e Frenologia – expressos por nomes como Thomas Buckle, Louis Agassiz e Arthur de Gobineau. Em Salvador, intelectuais como Nina Rodrigues (1862 – 1906) também irão interpretar fenômenos sociais e culturais a partir dessas premissas.

Ora, tendo em vista que a abolição não eliminou a tradição e os vícios escravistas na sociedade brasileira, era preciso encontrar algum argumento que justificasse a não ruptura com aspectos essenciais da antiga ordem, ou seja, da dominação cultural dos “civilizados” sob os “primitivos”. A pesquisadora Lilia Schwartz defende que essa velha estratégia foi a aposta das elites nacionais para manter a sua autoridade sobre o contingente de subalternos, os mesmos que sempre lhe serviram, só que, agora, ocupando a posição de homens livres.

Esse contexto se fortalece por um pensamento amparado em um ideal civilizatório eurocêntrico, através de uma crença absoluta da superioridade do ocidente e da sua missão civilizadora. Dito isso, fica fácil compreender os motivos pelo qual as teorias raciais foram acionadas e alçadas a um papel de centralidade na construção do projeto que previa modernizar o país.

Mas o que isso tem a ver com o Entrudo? Tudo, já que a cultura popular foi integrada como parte fundamental desse projeto civilizador. No caso de Salvador, a ânsia por conduzir a cidade à modernidade mobilizou esforços significativos de toda a elite local no sentido de “desafricanizar as ruas”, utilizando da expressão de Heráclito Filho. Assim, todo e qualquer costume africano deveria ser moderado (leia-se branqueado) quando não fosse possível aboli-lo. Mais uma vez, a festa negra entra na mira do controle, da reforma e da tentativa de apagamento.

Esse pensamento aumentou ainda mais o combate ao entrudo soteropolitano. Uma ampla campanha de desqualificação, influenciada pelos postulados positivistas de base racista de pensadores como Nina Rodrigues, foi levada a cabo através da publicação sistemática de posturas policias que proibiam enfaticamente a sua realização.

Assim, respondendo à pergunta que abre esse texto – “qual a justificativa utilizada para proibir a brincadeira do Entrudo?”, a narrativa construída argumentava enfaticamente que o entrudo distanciava a capital da Bahia das nações mais modernas do mundo. Para os grupos dominantes, o entrudo representava tudo aquilo que merecia ser abandonado em termos de valores. O entrudo representava a falta de higiene, a falta de educação perante a hierarquia, a incivilidade de modos e costumes – o que era lido como uma conduta agressiva e bárbara.

Jornal Gazeta da Bahia (26/01/1882)

Dentro dessa visão colonizada, o entrudo das ruas devia dar lugar à elegância, ao luxo, ao bom gosto – aspectos que, imaginava-se, caracterizavam as festas da Europa civilizada, como Nice e Veneza, especialmente. Esses valores passam a ser considerados “superiores” e demonstrações essenciais para o tão almejado progresso social.

Sobre a construção de uma narrativa baseada em ideias como civilidade e modernização, é bom salientar que, na perspectiva socioantropológica e histórica, a modernização pode ser compreendida como o processo de transformação estrutural da sociedade que muda para uma economia capitalista, uma ocupação do espaço que tende ao urbano, uma aquisição de centralidade da ciência na explicação do mundo, chegando ao plano dos comportamentos com o maior controle dos hábitos indisciplinados e “pouco racionais”. No contexto soteropolitano, as elites letradas viam-se como investidas da missão de levar adiante os ideais de modernização que inexoravelmente guardavam a marca do racismo, do eurocentrismo e da tentativa do apagamento do protagonismo da ação de indivíduos e grupos não brancos, mesmo no carnaval.

Para viabilizar esse empreendimento, era necessário, inclusive, ressignificar o espaço público, deixando-o a altura desta nova e moderna sociedade baiana que era desejada por esses grupos dominantes. É importante destacar esse aspecto porque a cidade que se pretendia moderna e civilizada no Carnaval possuía inúmeros problemas de infraestrutura urbana, transporte, moradia, saneamento básico e outros. Havia considerável déficit habitacional, o que aumentava o preço dos imóveis e alugueis, empurrando uma massa para cortiços no centro e as elites para a região sul da cidade. Havia grave instabilidade política nos primeiros anos de instituição da República, conflitos entre as elites da capital e do interior, além de epidemias de gripe, febre amarela, cólera e outras moléstias frequentemente fatais. A coleta de lixo era insuficiente ou mesmo inexistente em algumas freguesias, o que fazia o lixo se acumular pelas calçadas e ruas, dificultando o deslocamento de pessoas e carroças. Ou seja, vê-se que higienização, premissa indispensável para uma cidade que se quer moderna, passava ao largo da vida urbana da Salvador do final do século XIX e início do século XX.

 

A proibição

Apesar de perseguido desde a década de 1850, até a década de 1880 as brincadeiras do Entrudo ainda eram frequentes entre as classes populares. Depois de um longo período de esforço por parte das autoridades, o entrudo vai, finalmente, esmaecendo devido à sistemática repressão. É o que se vê nestes trechos dos Relatórios do Conselho Interino de 1880 e 1881:

Percebe-se que o Poder Público tinha no Entrudo uma expressão que ameaçava os ideais de progresso da nação. A repressão tomava a forma de medidas penais e administrativas, pois havia sanções caso fossem descumpridas as Posturas Municipais que regulamentavam o uso do espaço público e, em especial, o comportamento nos dias de Carnaval. Em 1881 as penalidades eram multa de 10$ ou 5 dias de prisão. Em 1883 dobrou-se a sanção financeira, o que pode indicar a dificuldade no controle das práticas. Em 1887 as penalidades foram minoradas para 6$ ou 3 dias de prisão. Vê-se aí que o empenho do Poder Público na repressão revestia-se no investimento dos recursos da máquina do Estado contra os que praticassem os jogos, tendo o chefe de polícia a obrigação de expedir comunicados, ordens e recomendações que balizassem os comportamentos.

Annaes da Assembleia Legislativa Provincial da Bahia (1881)

 

Annaes da Assembleia Legislativa Provincial da Bahia (1883)

 

Annaes da Assembleia Legislativa Provincial da Bahia (1887)

Nesse inusitado e excludente projeto de nacionalidade, a imprensa participava reforçando a abordagem negativa do brinquedo de rua de origem lusitana, conforme se vê nas publicações destacadas abaixo:

 

Esse tipo de abordagem dos jornais era reforçado nas semanas anteriores ao Carnaval, assumindo centralidade na construção da narrativa em torno dos ideais de civilidade e modernização.

Apesar da proibição oficial e de um maior controle por parte das autoridades, existem registros de práticas que remetem ao Entrudo até o início do século XX, o que sinaliza para a continuidade dessa tradição festiva mesmo em contexto repressivo. Além disso, as Posturas Municipais contra o Entrudo continuaram sendo publicadas pela imprensa, sinal de que a brincadeira não havia desaparecido completamente.

Aqueles que endossavam a campanha pelo abandono do entrudo sabiam que não seria possível retirá-lo de cena sem prever algo para lhe substituir. Deixar vazio um período que há séculos era caracterizado pelos seus excessos festivos provocaria, muito provavelmente, reações indesejáveis, podendo, inclusive, atrapalhar toda a estratégia sustentada até aqui para a efetividade do projeto modernizante da cidade de Salvador.

A solução encontrada foi modernizar também a festa. Nascia, então, o Carnaval moderno de Salvador para preencher o vazio deixado pelo Entrudo. Com seu primeiro desfile datado de 1884, clubes carnavalescos oriundos das elites da cidade passaram a apresentar para a população cortejos de pompa, com carros alegóricos que tematizavam fatos emblemáticos da história do progresso ocidental. Um novíssimo Carnaval que, a partir daqui, passou a ser utilizado como peça fundamental na missão civilizatória em pleno vigor naquela Bahia da virada do século.

Jornal A Notícia (13/02/1915)