Embaixada Africana

Obviamente os batuques africanos que embalavam o entrudo das ruas não silenciaram para o Cruz Vermelha e o Fantoches da Euterpe passarem. De todo modo, é só a partir de 1895, mais de dez anos depois de inaugurado o carnaval oficial e moderno da cidade, que a imprensa passa a registrar a presença de diversas manifestações negras na festa.

O marco inaugural desta façanha é creditado à Embaixada Africana, clube uniformizado negro que desde a sua aparição atraiu olhares curiosos pela organização e requinte com que se apresentava.

Seu fundador teria sido Mario Carpinteiro, ocupante do importante cargo de axogún (encarregado do sacrifício ritual dos animais) em um terreiro do Engenho Velho. Aproveitando essa informação, pode-se dizer, concordando com Félix e Fry (1993), que há vínculos notáveis entre terreiros de candomblé e essas agremiações carnavalescas, com o trânsito de concepções e perspectivas traçadas dentro da comunidade afrodescendente depois de extinta a escravidão.

A Embaixada Africana surpreendeu ao constituir-se como clube uniformizado negro, apresentando-se publicamente através de desfiles muito bem organizados com vistosos carros alegóricos e ricos figurinos. As histórias que contava em seus préstitos referiam-se a uma África de feitos gloriosos, distante do imaginário comum da pobreza, do atraso e da escravidão de que o continente era associado. Para isso acionavam as memórias de povos considerados mais civilizados, como os etíopes e os egípcios. Em 1897, por exemplo, em desfile faustoso prestaram uma homenagem ao poderoso imperador etíope Menelik II. O estandarte que utilizaram no carnaval de 1899 carregava um texto que ilustra bem esse aspecto.

Esse estandarte invencido,
Coberto já de mil glórias,
Vergado ao peso dos louros
Das africanas victorias.
[Correio de Notícias, 15/02/1899]

Alguns dos elementos da Embaixada guardam afinidades com os clubes carnavalescos de inspiração europeia, tais como: a forma de se comunicar por linguagem escrita, o formato do desfile com clarins anunciadores, banda tocando dobrados, carros alegóricos, personagens de destaque acompanhados de guardas de honra; além dos aspectos organizativos da agremiação, como a realização de reuniões, assembleias e bailes. Existia ainda a prática de importar da Europa, eventualmente, trajes e carros, compondo no plano da construção cênica um quadro híbrido quanto às origens dos elementos materiais. Abaixo um exemplo das cartas que a Embaixada Africana enviava para a imprensa.

A Embaixada Africana foi capaz de criar um modelo de representações de uma África tolerada, sendo também referência para que outras manifestações conseguissem driblar o controle público e levar às ruas práticas e valores quase sempre invisibilizados. A esse respeito, é digno de destaque que no Correio de Notícias de 25/01/1899 o secretário da Embaixada Africana solicita que o jornal faça a cobertura adequada do clube, rompendo com o que denominaram de “indiferentismo”.

Em 1897, apenas dois anos depois do seu primeiro desfile, a Embaixada Africana já gozava de grande popularidade na cidade, seus desfiles eram esperados pela população e bastante noticiados pela imprensa. É possível visualizar suas apresentações públicas a partir dos programas dos desfiles que o clube enviava para a imprensa dias antes do carnaval – temos os registros de 1897 a 1899.

No programa de 1897 chama a atenção que o programa do desfile veio acompanhado de um “decreto” que decide por uma reparação pelos danos cometidos aos africanos no Levante dos Malês. Abaixo o comunicado na íntegra:

Correio de Notícias, 27 de fevereiro de 1897 (layout adaptado pelo projeto)

Percebe-se que a Embaixada Africana se colocava como representante de uma altiva colônia africana, no direito, notadamente, de pedir astronômica quantia de indenização. A forma de se apresentar da Embaixada remete às coroações de Reis e Rainhas de Irmandades Negras, tendo uma roupagem simbólica que incorpora a crítica e a ironia, articulando referências de diversas partes da África, além de guardar respostas ao racismo científico vigente. Assim, as apresentações públicas da Embaixada Africana podem ser compreendidas como uma contraposição ao discurso vigente das elites.

Raphael Vieira Filho (1995) destaca que, no ano de publicação deste programa-manifesto, alguns trajes e o carro usado pelo personagem Menelik no desfile foram importados da Europa. O autor dirá ainda, numa análise do manifesto publicado, que os africanos “faziam escudos, dominavam artes musicais, domavam e montavam zebras, faziam e manuseavam espadas, tinham um complexa organização política e administrativa, consequentemente, um imperador com seus secretários, ministros, embaixadores e a burocracia.”

Nota-se, também, que estavam bastante atualizados acerca dos conflitos coloniais da África, assim como os articulavam com elementos locais associados ao racismo, à recém extinta escravidão e à revoltas como a dos Malês, vida na memória coletiva mesmo tendo se passado 60 anos do ocorrido. Nesse sentido, mesclando uma estética carnavalesca africana com elementos dos desfiles de inspiração europeia, a Embaixada Africana fazia a leitura de um cenário da história recente àquele momento do povo negro na Bahia, aliado a uma impressionante capacidade de interpretação de conjuntura.

Assim como em 1897, os desfiles de 1898 e 1899 deram ênfase às civilizações africanas tidas como mais proeminentes. É possível visualizar as apresentações destes dois anos clicando nas imagens abaixo.

Programa do Carnaval de 1898:

Relatos do Carnaval de 1899:

Por sua popularidade e aceitação tanto entre a elite como entre os populares, a Embaixada Africana se apresentava nas ruas centrais da cidade durante os dias de Carnaval. A programação para os dias festivos incluía, normalmente, a saída de um bairro que o clube guardava algum tipo de relação próxima, o desfile e a chegada a algum salão ou teatro para baile noturno.

Itinerário Embaixada Africana (Correio de Notícias, 19/02/1898)

Os desfiles da Embaixada gozavam de muita popularidade, sendo celebrados entusiasticamente pela população negra e também bastante elogiados pela imprensa local que, sabemos, era fiel representante das elites sociais baianas. Mais do que destaque nas páginas de jornal, o clube foi, de forma recorrente, alçado ao lugar de maior protagonista da festa. Com base nas informações da imprensa, é possível concluir que esta agremiação ocupou posição de centralidade no Carnaval de Salvador, especialmente de 1897 a 1899. A seleção de notícias abaixo evidencia o destaque dado à Embaixada Africana pela imprensa local no ano de 1898.

Por outro lado, as Rodas-de-samba e os Batuques, assim como os Candomblés e Afoxés, recebiam notas pequenas e críticas, além de cartas de leitores solicitando providências do chefe de polícia para que não permitisse esses folguedos por serem “africanos demais”.

Cabe destacar que essa normatização do carnaval guardava também a intenção de deserotização da festa e das ruas, pois a corporeidade africana era vista como lasciva, daí a lógica da repressão ou crítica a ritmos e danças como maxixe, samba e umbigada, assim como a estigmatização, inclusive com apreensão por parte da polícia, de instrumentos musicais percussivos.

Apesar de colaborar com a legitimação do modelo de carnaval imposto – marcado por uma organização primorosa e desfiles pomposos, a atuação de grupos como a Embaixada Africana está longe de ser meramente conformista, como defendem alguns estudiosos. A participação dessas agremiações no carnaval idealizado dos brancos pode ser compreendida como uma resposta social à implantação dessa “nova festa”. E essa resposta, ao que tudo indica, foi uma estratégia planejada com o objetivo de buscar alternativas não apenas para participar do carnaval sem sofrer repressões, mas, de forma mais acentuada, para facilitar a integração social da população negro-mestiça da cidade diante de um contexto repleto de incertezas.

Assim, quando o préstito impecável da Embaixada Africana se apresentava, além de ritualizar identidades e memórias ancestrais dos negros que a acompanhavam, também se estava comunicando a mensagem de que eles não eram inferiores, primitivos, sujos ou bárbaros, como acreditavam e queriam fazer crer aqueles que repetiam os ideais positivistas e eurocêntricos.

Ao recriar Áfricas aceitáveis nos seus desfiles, estavam negociando brechas com fins que extrapolavam os dias de reinado de Momo – os “embaixadores” estavam jogando sabiamente com os ideais racistas que desejavam o branqueamento do povo baiano e brasileiro.

Por conta da perseguição que os clubes carnavalescos africanizados começaram a sofrer na virada do século, não há nenhum registro visual desses grupos no Carnaval de Salvador. Como forma de fazer justiça a esse grande clube que foi a Embaixada Africana, o projeto Memórias do Reinado de Momo convidou o artista Anderson AC para dar vida à essa história, fazendo uma releitura do emblemático desfile de 1897. Assista ao minidocumentário “O imaginário desfile da Embaixada Africana” (direção: Álvaro Ribeiro).