Nome: Fantoches de Euterpe
Ano de fundação: 1884
Primeiro desfile: carnaval de 1884
Último desfile: carnaval de 1962
Fundador: Luis Tarquínio
O Fantoches de Euterpe nasce junto com o carnaval moderno de Salvador, tendo desfilado pela primeira vez no ano de 1884. Assim como o Cruz Vermelha, a inspiração para a maioria de suas apresentações vinha dos fatos, lendas e personagens emblemáticos da história do progresso ocidental. Fica fácil entender, então, a escolha pelo tema “A entrada triunfal de César em Roma” para a sua estréia carnavalesca nas ruas da cidade.
O entusiasta deste clube, e também seu primeiro presidente, foi o conhecido industrial Luis Tarquinio. Apaixonado que era por todo o universo que dava vida ao Fantoches, ele cedia a própria residência para as reuniões com os sócios do clube, bem como para a preparação das principais fantasias dos desfiles. Além de sociedade carnavalesca, O Fantoches foi um clube social, que por vezes chegou a promover concertos, bailes, recepções e reuniões.
Consta que o nome “Fantoches” fazia alusão aos bonecos de marionete ou títeres, aqueles bonecos animados por arames (ou cordas) ou diretamente pelas mãos, e amplamente utilizados em cordéis e em contações de histórias. O segundo nome denuncia a fonte de inspirações e influências do grupo – “Euterpe” se referia a uma das nove musas gregas, filhas de Zeus e Mnemósine (“Memória”) – juntas estas musas representavam diversas modalidades de artes e conhecimentos. À musa “Euterpe” cabia a música, sendo conhecida, por isso, como “doadora de prazeres”. Também é provável que esse nome tenha sido inspirado pelo antigo “Clube Euterpe Comercial”, grupo que já fazia sucesso no carnaval do Rio de Janeiro à época.
A maioria dos ensaios do Fantoches para o carnaval eram promovidos próximo à Praça da Piedade, uma vez que a sede do clube esteve fixada por bastante tempo na rua Pedro Autran. Nesses ensaios eram repassados os dobrados, as marchas e os hinos, sempre com o acompanhamento e suporte da banda de 2º corpo da Polícia Militar.
Assim como o Cruz Vermelha, seus desfiles eram organizados a partir de um tema central que era devidamente representado nas diversas alas que compunham o cortejo carnavalesco. O tom e o ritmo ficavam a cargo da banda de música (charanga), que sempre abria o desfile – com uma média de trinta músicos que vinham a pé ou a cavalo. O carro triunfal, que trazia o personagem central do desfile e o estandarte do clube, era a alegoria mais esperada e mais comentada a cada ano. Além disso, dezenas de pessoas fantasiadas (em sua maioria sócios do clube) vinham no chão, a cavalo, em carros alegóricos ou em veículos comuns e davam vida aos enredos que ano a ano eram carnavalizados pelo Fantoches.
Certamente o fato de ter em seu quadro de associados personalidades da indústria, do comércio, das letras e da política da Bahia possibilitou ao clube investir em desfiles luxuosos. Toda essa pompa o transformou em uma das atrações mais populares das primeiras décadas do Carnaval de Salvador. A imprensa, figura essencial da campanha civilizatória em voga na época, não perdia uma oportunidade de enaltecer tudo o que o Fantoches da Euterpe representava para aquele tempo.
Este notável e brilhantíssimo club manteve este anno intacta a gloria conquistada nos annos anteriores. Em luxo e riqueza não se pode imaginar nem desejar coisa melhor. É proverbial o gosto, o esmero, o capricho, a extrema vaidade que este distinctíssimo club ostenta nas suas vestimentas riquíssimas, deslumbrantes, feéricas.
[Diário do Povo, 04/03/1889]
Esse enaltecimento ganha ainda mais destaque nas publicações que narram detalhadamente os desfiles. Foi o caso de 1889, ano em que o Fantoches apresentou um de seus desfiles mais emblemáticos, com uma homenagem ao “El-Rei Sol” (Luís XIV da França, apelidado de “O Grande” e “Rei Sol”). Esta apresentação seria lembrada por muito tempo como um momento áureo da festa soteropolitana. Interessante notar que, muito embora um dos temas tenha sido a França de Luís XIV, isso não impediu o Fantoches daquele ano de dedicar carros alegóricos a figuras mitológicas como Vênus, Ceres e Baco.
Puxava o préstito a banda de música da Euterpe, tocando um excellente dobrado composto exclusivamente para este anno. Os músicos brilhantemente vestidos montavam animaes arreiados com muito apuro. A charanga vestia à Hussard, roupa emprestada (diz o programma) pelo rei da Hungria em homenagem à gloriosa descida do Sol! Nestes termos, comprehende-se que coisa não foi! Um conto de fadas…
Immediatamente seguiam quatro cavalheiros vestidos no solemne e histórico estilo da corte de Luiz XV, onde os cavalheiros disputam com as damas em galanteios e coisas de fino e requintado espírito. Realmente os quatro cavalheiros de hontem podiam entrar sem susto
“No embate das grandes luctas
Travadas em plena sala,
Onde as luzes tornam mornos
Os cheiros que a flor exhala…”
Os Ministros […] estavam optimos pela fina crítica…que bem se poderia aplicar a um certo governo que condecora a torto e a direito.
A Guarda de Honra, deslumbrante, era seguida por um clarim que precedia o portentoso carro do triumpho, onde ostentava-se derramando ondas de luz El-rei Sol. O carro bastante alto, estava cuidadosamente preparado a velludo vermelho, onde se notava aqui e alli algumas áureas manchas de luz, semelhando estrellas.
A figura allegorica do Sol empunhava o estandarte dos Fantoches circundado por uma grande coroa e rodeado de cinco gênios, depositários e guardas dos louros da victoria.
O carro da deusa Vênus era um mimo de arte, de gesto e phantasia. A sua vista despertava no espectador as imagens bellíssimas que nos transmitia o gênio inspirado e transparente do povo grego. […]
Os Lords de Veneza traduziam bem a tradicional fidalguia dos nobres venezianos.
Um outro mimo de graça e belleza é o carro das Flores. Este carro apresenta-nos um quadro de uma singeleza admirável, dessas que tocam e comovem-nos o coração. […] – quatro lindas criancinhas, vestidas de borboletas pousando nas flores e aurindo-lhes o perfume. Magnífico!
Um outro quadro digno do anterior é o carro de Ceres, a deusa da agricultura.
Por falta de espaço deixamos de mencionar todos os outros. Não terminaremos, porém, sem lembrar o poético quadro do deus Baccho que reproduzia a fábula antiga.
Os Fantoches, club popularíssimo e um dos mais distinctos impulsionadores das festas carnavalescas, foram ontem alvo de muitos applausos. Na rua do Rosário, por exemplo, os Fantoches foram applaudidos delirantemente. Em todo o seu trajeto, aqui e alli, das ruas, das janelas das casas, das varandas dos sobrados havia explosões de vivas entusiásticos, infrenes de palmas. Aqui eram chuvas de flores, de prata, alli eram nuvens de flores naturaes, […], pombos amarrados em laços de fitas.
À noite fez a sua passeata sempre acompanhado de uma massa enormíssima de admiradores que o applaudiram com força e delírio, fazendo a sua entrada no Polytheamma às 11 horas da noite mais ou menos.
[Diário do Povo, 04/03/1889]
Nas primeiras décadas da folia de Momo, o carnaval já acontecia nas ruas centrais da cidade, mas sem um roteiro único para todas as entidades. Os próprios clubes traçavam suas rotas, saindo de bairros próximos. Era comum o Fantoches sair da Graça e seguir pelo Corredor da Vitória, Campo Grande, Forte de São Pedro, Mercês, Rosário, Largo e Portão da Piedade, São Pedro, São Bento e Praça do Palácio; voltava pela rua Carlos Gomes e seguia até o Campo Grande. A partir daí, já noite, percorriam as ruas até o Theatro Polyteama, onde eram esperados para grandes bailes a fantasia.
AUSÊNCIA
Impactados por oscilações na economia local, os dirigentes do Cruz Vermelha e do Fantoches da Euterpe se veem forçados a abandonar o carnaval ainda quando os clubes viviam o seu auge na festa. Assim, as duas entidades deixam de desfilar de 1892 a 1903. Mesmo distante das ruas por mais de uma década, a imprensa não deixou de mencionar, sempre em tom saudoso, os principais personagens dessa fase áurea da folia momesca soteropolitana. Estratégia, sem dúvida, importante para que não caíssem no esquecimento durante este hiato temporal tão extenso.
RETORNO TRIUNFAL
Depois de treze anos longe do carnaval, o Fantoches da Euterpe retorna para as ruas no ano de 1904. Durante todo este tempo o clube não foi esquecido e a notícia da sua volta deixou a imprensa e os foliões saudosos em polvorosas.
Bem o dissemos em edição anterior: preparem-se todos para assistirem deslumbrados à ressurreição do Carnaval da Bahia.
E assim foi efetivamente, não podia ser mais bem concebido, nem melhor executado que aquilo a que toda Bahia assistiu.
[Correio do Brazil, 17/02/1904]
Tanta espera valeu a pena e o carnaval de 1904 do Fantoches foi, segundo a imprensa, o retorno da “legião brilhante e aristocrática de Momo”. Imaginação e criatividade certamente definem os temas e os personagens que o clube elegeu para carnavalizar neste ano – com arautos vestidos de guerreiros, charanga vestida à moda escocesa, uma guarda de honra à Mephistopheles (personagem satânico da Idade Média), um carro estandarte dedicado à Semiramis (rainha mitológica que, segundo as lendas gregas e lendas persas, reinou sobre Pérsia, Assíria, Armênia, Arábia, Egito e toda a Ásia por mais de 42 anos), uma guarda nobre vestida à moda do Rei Carlos Magno, uma homenagem ao deus Mercúrio, mosqueteiros vestidos como a guarda de Henrique IV. E isso não era tudo, como bem detalha o relato do Jornal Correio do Brazil.
Ei-los, atletas invencíveis que voltam, depois de longa ausência, à procura dos louros imarcescíveis que seus adeptos nunca lhes souberam sonegar.
A começar pela charanga, vestida a moda de guerreiros escoceses, até a guarda de honra, à Mefistófeles, precedido tudo por dois arautos dos guerreiros de Bactre, nada mais deslumbrante, mais rico, mais executado!
E vinha então o luxuoso carro do estandarte, uma obra prima nacional, no qual se destacava Semirames, a vencedora de toda a Ásia, empunhando aquele glorioso estandarte.
Esse carro é guardado pela guarda nobre da poderosa rainha, vestida a capitães de Carlos Magno.
Seguia-se o carro de Mercúrio, com uma linda alegoria ao comercio – Paz e trabalho, carro que era acompanhado por mosqueteiros da guarda de Henrique IV.
Outro carro, precedido de vários carros com sócios e cavalheiros, que produziu magnífico efeito foi o da Maternidade – O ninho do amor uma belíssima concepção.
Carro com flores e aparecia o das quatro estações, representado por distintíssimas senhoritas; este carro era seguido pela Liga Cívica vibrante nota a todos os corações baianos e tão cara.
Vem depois a Gondola de Lido, tripulada por gentis crianças, que pareciam entrar também, à moda dos de Veneza antiga, seus apaixonados madrugues, à luz doce da lua, sangrando o cristalino azul das mansas águas…
E terminava o luxuoso préstito uma linda alegoria a Orfeu, representado em um grande e bem confeccionado violoncelo donde se fazia original orquestra, composta de interessantes crianças, sob a regência de Orfeu, outra grácil criança.
Todos estes carros eram recebidos em todas as ruas do trajeto sob a verdadeira chuva de confete e serpentinas, e ao som dos mais entusiásticos “Vivam os Fantoches!”.
Agora, descrito palidamente, este préstito, demos aos esforçados moços sinceros parabéns pelo gosto, pela riqueza com que se apresentaram no Carnaval de 1904.
E digamos também o que devemos do laureado e popularíssimo.
[Correio do Brazil, 17/02/1904]
Apesar do ecletismo, de não se prenderem com exclusividade a uma única temática nos seus desfiles, é possível observar que o Fantoches da Euterpe tinha um apreço evidente pela mitologia greco-romana e pela história européia clássica (antiga, medieval e moderna), sempre fazendo referência às experiências de heróis e heroínas, reis, rainhas, deuses e deusas.
Tudo isso ficou evidente, também, no desfile de 1905. Neste cortejo, novidades da época como o cartão postal, também foram representadas no texto carnavalesco do Fantoches.
Este club apresentar-se-a deslumbrante com o seu novo estandarte, que será empunhado por uma gentil senhorita representando Vênus, a plástica de todas as bellezas sentada em seu majestoso templo.
O Mensageiro da Luz com sua armadura e o arauto, annunciando a presença da deslumbrante deusa.
Quatro clarins despertarão a attenção do público e estofos vistosos serão as vestes da banda musical representando os Campeões da Attica.
Precede o carro do estandarte o grupo dos Cavalheiros do Amor vestidos de ouro e sedas sob o mando do Príncipe do Amor.
Entre as columnas do corágico monumento de Lysicrates Cupido contempla a formosa Psyché.
Deslumbrante guarda representando as Amazonas de Vlasta enthusiasmará a multidão, bem como os Guerreiros de Roma e a Guarda Alva.
A Alegria entre flores se ostentará e a Imprensa em seu throno de luz tendo aos pés a ideia, a polêmica, a rima, a notícia, a chrônica e a arte.
O Sonho e o Cartão Postal muito agradarão. Dará uma excelente nota o Poder e os Embaixadores do Mikado.
Já veem os leitores, pela pallida descrição que fazemos, o que não será amanhã o Carnaval com a presença do jamais olvidado Club dos Fantoches.
[Correio do Brazil, 04/03/1905]
Entre altos e baixos, oscilando entre desfiles apoteóticos cada vez mais raros e longas ausências cada vez mais frequentes, o Fantoches da Euterpe conseguiu resistir até a década de 1960, tendo se apresentado pela última vez no Carnaval de Salvador no ano de 1962, desfilando com o tema “A bela adormecida”.