Repressão, Resistência e Negociação

A proliferação de clubes uniformizados africanos no início do século XX começou a incomodar, como em 1899 quando se escreve que: “chega-se a crer que a Bahia ou pelo menos seu carnaval naturalizou-se genuíno filho do Congo”. Ou ainda em 1902, quando se diz inclusive que o Carnaval deve ser aperfeiçoado, pois estaria “pervertido pelo samba, pelo candomblé, pela exibição de farrapos”.

Em 1905 a Secretaria de Segurança Pública publicou aviso com as seguintes proibições: 1º) a exibição de clubes de costumes africanos com batuques; 2º) a exibição de críticas ofensivas a personalidades e corporações; 3º) o uso de máscaras depois das 18h. Além disso: “nenhum clube poderá apresentar-se nas ruas da capital sem aprovação das respectivas críticas pela polícia.”. Nesse mesmo ano, aplicando a política de restrição, a polícia apreendeu o estandarte e os instrumentos de um “clube africanizado”. Naquele momento, a africanização do Carnaval de Salvador passou a tratada como problema de polícia.

Correio do Brazil, 25/02/1905

Todos os clubes afrocêntricos foram proibidos de 1905 a 1914, o que marcou uma radicalização de uma característica das décadas anteriores a 1930, no qual a elite baiana, especialmente na década de 1910, agiu frente a suposta ameaça da predominância dos elementos “africanos” sobre os “europeus”. Essa aversão vinha a algumas décadas, a ponto de uma parte da imprensa ter denominado o carnaval de 1898 como “carnaval africano”, com o relativo protagonismo de clubes uniformizados negros como Embaixada Africana, Pândegos da África, Filhos da África e A Chegada dos Africanos.

A partir de 1915, com a suspensão da proibição, clubes com acentuadas características de matriz africana voltaram a ganhar mais visibilidade e possivelmente cresceram até 1920. Pode-se entender esses cordões e pequenos grupos como parte do processo de organização comunitária e política que ganhou espaço na cultura carnavalesca de Salvador, o que permitiu a sobrevivência e consolidação de práticas afro-mestiças. Essas práticas guardavam forte associação com o Candomblé e com a musicalidade afro.

Vieira Filho (1995) entende o período de 1880 a 1930 como marcado por quatro momentos. Um primeiro até 1888, quando havia predominância do entrudo nas classes populares. Um segundo, entre 1889 e 1904, quando não havia proibição legal aos divertimentos afro-brasileiros, tendo proliferado manifestações afrocentradas uniformizadas, ligadas aos candomblés ou tendo entre seus repertórios estéticos elementos claramente africanos. Um terceiro, entre 1905 e 1914, no qual há uma expressa proibição das manifestações afro-baianas, os chamados “africanismos”, por meio de editais dos chefes de polícia. Esse momento teria sido marcado pelo declínio no registro das manifestações na imprensa, bem como pelo desaparecimento dos grupos uniformizados negros ou sua modificação, excluindo elementos africanos nos manifestos e optando, naquele momento, pelo uso de temas indígenas. Por fim, o quarto período categorizado seria entre 1915 e 1930, quando há uma flexibilização da presença dos elementos carnavalescos afro-baianos, o que fez como esses espraiassem-se por ruas e até por alguns salões.

 

O QUE ESSE CARNAVAL NOS DIZ?

O Carnaval de Salvador é um excelente momento para pensar a transição para a República em Salvador, investigando a relação entre o Estado e o cidadão num momento em que a participação popular passava ao largo do mundo político. Nas festas populares, no entrudo, no Carnaval e nas pequenas comunidades locais ou étnicas o mundo subterrâneo da cultura popular engoliu aos poucos o mundo aparentemente dominante das elites. Isso pode ser exemplificado pela incorporação do maxixe e variações do samba, conhecido na época como samba de salão, adaptado para ser dançado a dois, nos bailes dos clubes de elite como o Politheama e o Theatro São João a partir da década de 1920. Isso quer dizer que mesmo nos locais e coletivos dos setores médios e de elite houve penetração de elementos afro-brasileiros, em clara hibridização e circularidade cultural.

A tentativa de construção de uma República sem a participação popular direta pôde ser percebida no Carnaval de Salvador entre 1880 e 1930. Assim, a não participação de negros-mestiços nos centros decisórios da política institucional se relaciona com a limitação, perseguição e discriminação às formas de manifestação popular e de matriz africana. Mesmo assim, a participação no Clubes Uniformizados, assim como nos batuques e afoxés, construiu uma participação efetiva no espaço público por meio da expressividade manifesta no Carnaval, campo no qual pode se apresentar amplo leque de práticas em circulação no âmbito religioso e da sociabilidade comunitária.

Foi também, o Carnaval, uma espécie de culminância de um ciclo de festividades de católicas, que em Salvador tomaram a forma de “festas de largo” e em que elementos de matrizes diversas se hibridizavam com circularidade, negociação, tensão e contato – que quase nunca eram mediados por instâncias institucionais.

Percebe-se que os Clubes Uniformizados Negros negociaram tanto no âmbito simbólico quanto das hierarquias sociais para viabilizar a sua existência e legitimidade. Desse modo, é patente que esses coletivos traduziram diversos elementos das tradições de matriz africana confluindo-os com formatos festivos e carnavalescos de molde europeu, sendo parte da estratégia de construção da legitimidade desses grupos, notadamente da Embaixada Africana, o uso de referências de uma África entendida como mais “evoluída”, portadora de feitos militares, técnicos e artísticos considerados notáveis, tais como os Egípcios, Mouros e Etíopes. Essas agremiações tiveram um auge por cerca de 10 anos, entre 1895 e 1905. Porém, mesmo após o seu desaparecimento, pelo menos dos registros na imprensa, os seus formatos e práticas configuraram um legado que acabou alterando a maneira como blocos, cordões e afoxés posteriores se manifestavam no período momesco.

Por fim, o Carnaval de Salvador entre 1880 e 1930 foi palco de manifestações diversas estendidas num espaço social, simbólico e urbano que tomou a forma de um campo festivo complexo que garantiu mais legitimidade, poder e capital simbólico aos clubes uniformizados brancos, mas viu prosperar alternativas negociadas dos clubes negros, bem como eclosões de batuques e afoxés claramente resistentes e insistentes aos projetos civilizatórios dos setores letrados, de elite e do Poder Público.

É possível associar as agremiações negras com as práticas religiosas de matriz africana que apresar de sofrerem perseguições do aparato policial, administrativo, judicial e ideológico, possuía uma atratividade que transcendia círculos sociais dos negros, mestiços e pobres. As manifestações no carnaval, portanto, estavam ligadas por diversas afinidades às manifestações das danças, comidas, hábitos cotidianos, música, festas religiosas, irmandades e candomblés.

Percebe-se, então, que a partir da década de 1880 a oposição entre o Entrudo e o Carnaval se acentua – apesar de existirem registros do Carnaval nos moldes europeizados já na década de 1840 – tomando a forma de supressão da “barbárie” pela “civilização”. Após 1888, há um envolvimento explícito das elites na configuração de novos limites sociais, no entendimento do que deveria ser a liberdade, os usos do espaço público e, em especial, a vinculação dos negros nesses âmbitos. Esse é um fator que explica parcialmente o desencaixe entre as manifestações da cultura popular no Carnaval de Salvador e os ideais modernizantes, sendo os primeiros vistos como agentes do atraso. Assim, para além de uma inclusão efetiva nos espaços decisórios da política institucional, grande parte da população negra e pobre de Salvador construiu uma participação no espaço público por meio da expressividade manifesta no Carnaval, campo no qual pode se apresentar amplo leque de práticas em circulação no âmbito religioso e da sociabilidade comunitária.